Um dia, em certo lugarejo cubano, com as memórias do “Che” ainda gravadas em frontarias de prédios cansados, entrei numa loja cuja natureza oscilava entre a galeria de pintura e o depósito de “bric-à-brac” . A maior parte da mercadoria fazia tagatés ao turista do capitalismo, por entre velhas fumando enormes charutos, enquanto enxotavam moscas presumivelmente anti-castristas, e meninas impúberes a prometerem prostituição pedófila. As telas expostas eram sofríveis, mas duas delas prenderam-me a atenção e senti-me obrigado a adquiri-las. Estão hoje no meu escritório. Uma apresenta a cabeça de um monarca, revelando a particularidade de exibir como coroa um conjunto de cabeças decepadas, formando no seu conjunto as hastes desse real símbolo. Aos olhos do rei faltam as pupilas. Eles, esses olhos, são apenas fendas oblongas, conferindo ao rosto jovem uma expressão levemente irónica. A outra pintura revela, em primeiro plano, o perfil de um rei velho, ameaçado por duas figuras também coroadas e visivelmente mais jovens. Ambas lhe acenam com adagas, uma voltada para o céu, outra apontada ao peito. Tudo em amarelos claros, ocres e tons de laranja, ou seja, tudo em cores antilhanas.
Na altura não descortinei cabalmente a explicação do impulso irresistível que me forçou a adquirir as telas. Mas elas tanto e tão bem me contemplaram, a partir da parede fronteira, que acabei por suspeitar que havia descoberto a causa mais funda dessa compulsão aquisitiva. Pois não era Cuba nessa altura – há quatro anos – o melhor de todos os lugares para reflectir sobre os símbolos e sinais do efémero Poder? Cuba, esse lugar de cruzamento entre velhas e experientes fumadoras de charutos, meninas impúberes, prontas à prostituição, e o aparato de cabeças decepadas e adagas vingadoras?
AMADEU CARVALHO HOMEM
Presidente da Direcção da ALTERNATIVA
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