sexta-feira, 28 de novembro de 2008

INÍCIOS DA REPÚBLICA NO PORTO

A iniciativa da constituição do Centro Eleitoral Republicano Democrático do Porto pertenceu a A1ves da Veiga, a mais espontânea e persistente dedicação republicana moderna em Portugal; e a nova agremiação política aparecera em público, com surpresa atónita mas cortês e respeitosa, pela primeira vez, numa impressiva solenidade liberal que no Porto se efectuou, com singular, lúgubre imponência. Foi a trasladação das ossadas dos enforcados da Praça Nova, recolhidas numa urna do pátio da casa da Misericórdia, à Rua das Flores, e transferidas para o monumento fúnebre que a mesma Misericórdia lhes consagrara no seu cemitério privativo, no campo santo do Prado do Repouso. O Centro Republicano fez-se representar no cortejo por uma delegação respeitável, e os anúncios convocatórios saíram insertos nos jornais logo a seguir ao convite oficial da irmandade. Poucos eram, porém, então os republicanos portuenses agremiados, mas a escassez da quantidade encontrava-se brilhantemente compensada pelo lustre da qualidade. Porque, entre os fundadores do novo Centro, se contavam um desembargador da Relação (Pereira de Sousa); um engenheiro das obras públicas (José Jerónimo de Faria); um professor do liceu (Augusto Luso). E logo vinham advogados, Alexandre Braga, Manuel José Teixeira; engenheiros, Eduardo Falcão; lentes, Joaquim Duarte Moreira de Sousa; farmacêuticos, Lopes da Silva, Salgado Lencart; leccionistas, O’Neill de Medeiros; médicos, Tito Jorge de Carvalho Malta; jornalistas, Prado de Azevedo. Era uma verdadeira aristocracia intelectual.

 [ Nota : a cerimónia de trasladação das ossadas dos “Mártires da Liberdade” a que o texto alude ocorreu, no Porto, no dia 18 de Junho de 1878. ]

 SAMPAIO BRUNO, Os Modernos Publicistas Portugueses

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A SÉ VELHA E OS CÓNEGOS

Não andavam os cónegos satisfeitos com o seu coro a meio da igreja. Ali se cruzavam os ventos, que irrompiam pelas quatro portas, voltadas duas a norte, uma a oeste, outra a sul. Todos os dias, de verão e de inverno, tinham de lá estar longo tempo, às horas matutinas e às horas vespertinas, com grande incómodo seu. Os cónegos estavam prontos a sujeitar-se àqueles incómodos uma ou outra vez, nos dias de grande solenidade pontifical; mas, para a recitação quotidiana do Ofício divino, desejavam um lugar mais reservado, mais agasalhado, onde desempenhassem o seu múnus com um pouco de comodidade. Lembraram-se então de erguer um coro alto, ao fundo da igreja, ao nível dos trifórios, onde pudessem cantar todos os dias os louvores divinos. Foi em 1469 que o coro se inaugurou.

Dr. António de Vasconcelos, A Sé-Velha de Coimbra

domingo, 16 de novembro de 2008

EXPRESSIVIDADES


Há […] dois pólos essenciais na expressividade individual, dois limites expressivos no espaço dos quais as representações e as práticas do rosto adquirem todo o seu sentido. Por um lado, o de uma expressividade súbita, brutal, incontrolada, quando o rosto manifesta que o indivíduo está fora de si mesmo; por outro, o da impassibilidade de um rosto impenetrável. Trata-se evidentemente de duas possibilidades extremas que se podem encarnar em figuras opostas: as da paixão, do arrebatamento, da privação da posse do eu, da “perturbação” […] ; e, pelo contrário, as da temperança, da moderação, do comedimento e da posse do eu.

 Jean-Jacques Courtine & Claudine Haroche , História do Rosto

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

ATIRAR PEDRAS AO SOL


Eh! velhos pinheiros!

Cá estou outra vez

a falar com vocês

numa língua estranha

que não é português

nem espanhol …

Mas esta alegria é do princípio do mundo

de andar com mãos roubadas a um vagabundo

a atirar pedras aos pássaros e ao sol.

 

JOSÉ GOMES FERREIRA, Areia, XXVII

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

FORMA E CONTEÚDO NA ARTE

As correntes formalistas, dedicando-se exclusivamente aos processos formais e condenando a intenção expressiva e o propósito de comunicar com os outros homens por intermédio da arte e desinteressadas à partida da sua receptividade, da eventual emoção que provocam, desempenham um papel redutor do valor artístico. Por tudo isso se critica o formalismo e as suas pretensões absolutizantes. Se defende a concepção da arte como um valor e um elemento da sociedade e portanto com profundas significações sociais. Se defende que a obra de arte é um meio de comunicação com seres humanos e que é justo desejar que o artista, em vez de desprezar a reacção que a sua obra provoca, procure que ela provoque uma reacção espontânea de agrado e apreço. Se defende uma arte de intervenção. Mas em atitude contrária à dos dogmáticos e intolerantes e teorizadores do formalismo; nesta atitude não se desprezam os meios formais antes se lhes atribui um valor estético-base. Explica-se assim que ao mesmo tempo que se critica o formalismo se verifica e se sublinha o valor estético da forma e da arte formalista.

 ÁLVARO CUNHAL, A arte, o artista e a sociedade, 1996

sábado, 1 de novembro de 2008

CALÇADA DO CARDEAL

Pequeno tambor orgia modesta

o lago tranquilo a descoloração

tintura de brancos e verdes floresta

o lago tranquilo a prostituição

candura doçura nos olhos em festa

mão no coração

 

A bola de vidro rola vis-a-vis

com as flores que altas são no jardim.

Há justos e réprobos porque o Senhor quis

vingar-se de nós porque sim

 

MÁRIO CESARINY (1923-2006), Nobilíssima Visão