segunda-feira, 30 de junho de 2008

OUTROS TEMPOS

[…]

Começou o Estrela por abrir a porta da barbearia. Era barbeiro, o Estrela. Acabavam justamente de bater as onze. Nunca saía do quarto antes. E o Amadeu, o alfaiate, que com a rosa dos alfinetes ao peito, a fita métrica ao pescoço, e uma letra vencida no bolso mourejava desde manhã cedo, não podia engolir serenamente semelhante ultraje.
“Há sujeitos com muita sorte! …” , resmungava da sua loja, ao fundo da praça. Mas calava-se diante do olhar irónico dos empregados. Pegava no giz, e num traço mais carregado que fazia no pano punha o resto dos pensamentos. O Estrela, esse vestia a bata e chegava-se à porta. “Então Deus nos dê muito bons dias!” Cumprimentava ao mesmo tempo o mundo e o seu grande amigalhaço, o Gil, latoeiro e vizinho.

[…]

Miguel Torga, O Estrela e a Mulher

sábado, 28 de junho de 2008

ALCANÇAR DEUS

[…]

Um dia um homem perguntou ao xeque quais eram os modos de alcançar Deus. “Os modos de alcançar Deus”, replicou, “são tantos quantas as criaturas que há neste mundo. Mas o mais curto e mais simples é servir os outros, não os ofender e fazê-los felizes”.

[…]

MOJDEH BAYAT e MOHAMMAD ALI JAMNIA, Contos do País dos Sufis

quinta-feira, 26 de junho de 2008

CIDADE NOCTURNA


Assim, é sobretudo de noite que a cidade se me revela. Nas ruas ermas, os candeeiros meditam sobre velhos espectros, velam o rasto do mundo desaparecido, essa ausência que se sente em tudo o que foi tocado pelo homem e lhe retém o calor da vida. Mas porque esta cidade não confraterniza connosco, porque a habitamos como quem passa, como provisoriamente se habita uma estalagem, porque somos nela intrusos, eu reconheço-lhe a verdadeira face não à luz da evidência diurna, mas a uma obscura luz de eternidade.

VERGÍLIO FERREIRA (1916-1996), Carta ao Futuro

terça-feira, 24 de junho de 2008

CAMINHO



Fez-nos bem, muito bem, esta demora;
Enrijou a coragem fatigada …
Eis os nossos bordões da caminhada,
Vai já rompendo o sol: vamos embora.

Este vinho, mais virgem do que a aurora,
Tão virgem não o temos na jornada …
Enchamos as cabaças: pela estrada,
Daqui inda este néctar avigora! …

Cada um por seu lado! … Eu vou sozinho,
Eu quero arrostar só todo o caminho,
Eu posso resistir à grande calma! …

Dexai-me chorar mais e beber mais,
Perseguir doidamente os meus ideais,
E ter fé e sonhar – encher a alma.

Camilo Pessanha (1867-1926), Caminho

sábado, 21 de junho de 2008

O ADEUS


Como é fácil amar aqueles que se despedem! É que a chama que arde pelos que se afastam é mais pura, alimentada pelo fugidio lenço que nos acena do navio ou da janela do comboio. A distância penetra como uma tinta naquele que desaparece e repassa-o de um fogo suave.

WALTER BENJAMIN (1892-1940),
Imagens de pensamento.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

O SONHO EM PESSOA


Para Search (e, sobretudo para Pessoa e Bernardo Soares) o sonho é a verdade, sendo mentira, ainda que consciente dessa mentira. Pela intensidade com que se sonha e idealiza, o sonho converte-se em verdade e em realidade. Certo da validade deste recurso, o poeta faz da ficção e da ilusão a sua vida, não apenas como fuga de si mesmo, mas como motivo de poesia.

Um templo construí – muro e fachada –
Sem a ideia de espaço projectada,
Com o requinte de um barco engalanado;
As paredes são feitas de meus medos,
Os torreões de choro e pensar fundo –
E esse estranho templo desfraldado […]
É muito mais real que todo o mundo.

Também pelo sonho se processa a sua fuga do nada e do vazio que o levaria à auto-destruição. Nele, o sonho não é mera abstracção, mas uma realidade viva e vivida como meio de sobrevivência.

LUÍSA FREIRE, Fernando Pessoa – Entre Vozes, entre Línguas

quarta-feira, 18 de junho de 2008

O DILÚVIO DA VIDA

Indra matou o dragão, um gigantesco titã com forma de uma nuvem-serpente que se ocultava nas montanhas, e mantinha as águas celestes cativas no seu ventre. O deus arremessou o seu raio na direcção dos pesados anéis do dragão, e o monstro despedaçou-se como uma pilha de juncos. As águas libertaram-se e derramaram-se como fitas pela terra, voltando a circundar o corpo do mundo.
Este dilúvio é o dilúvio da vida e a todos pertence. É a seiva dos campos e da floresta, o sangue que circula nas veias. O monstro tinha-se apropriado deste bem comum, inchando a massa do seu corpo egoísta e ambicioso entre o céu e a terra, mas estava agora morto. Os sucos voltaram a fluir; os titãs refugiaram-se nos mundos subterrâneos; os deuses regressaram ao topo da montanha que ficava no centro, para voltar a reinar das alturas.

HEINRICH ZIMMER (1890-1943), Mitos e Símbolos na Arte e Civilização Indianas

segunda-feira, 16 de junho de 2008

REMORSO MEU ... DE TODOS NÓS



Poeta, não te entendo: que razão
pode existir para um de nós qualquer
sentir remorsos por não ter nação
do jeito ou da maneira que se quer?

De tudo quanto falas, trago em mim,
desde menino e moço, de garoto,
de tudo um pouco, pois ao mundo vim
no norte do país, dito minhoto.

Lá se encontra o melhor de Portugal
em todos os sentidos, desde as festas
ao vinho verde, que é o principal.

Com tais feições, mais boas do que más,
muitas das quais de tradições pagãs,
não sei, Poeta, porque te molestas!

JOÃO DE CASTRO NUNES

PS - Pede-se ao leitor que leia
o anterior registo, ou seja, o poema deAlexandre O'Neill.

domingo, 15 de junho de 2008

MEU REMORSO DE TODOS NÓS ...

Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há “papo-de-anjo” que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós …

ALEXANDRE O’NEILL, PORTUGAL

sexta-feira, 13 de junho de 2008

A DECADÊNCIA DE ROMA

(…) No tempo em que o domínio de Roma se circunscrevia à Itália, a República facilmente podia subsistir. Todo o soldado era simultaneamente cidadão. Cada cônsul comandava um exército; e os outros cidadãos iam à guerra sob o comando daquele que lhe sucedia. Como as tropas não eram em número excessivo, havia o cuidado de não receber na milícia senão pessoas que possuíssem bens bastantes para terem interesse na conservação da cidade. Enfim, o Senado examinava de perto o comportamento dos generais e fazia-lhes ver que era melhor nem sequer pensarem em fazer fosse o que fosse contrariamente ao dever. Mas quando as legiões ultrapassaram os Alpes e o mar, os homens de guerra, que se tinha de deixar durante várias campanhas nos países subjugados, foram perdendo a pouco e pouco o espírito de cidadãos; e os generais, que dispunham dos exércitos e dos reinos, passaram a sentir a sua força e não mais conseguiram obedecer. (…)

MONTESQUIEU (1689-1755), Considerações sobre as causas da grandeza e decadência dos Romanos

quarta-feira, 11 de junho de 2008

HÖLDERLIN, O ETERNO


Entre as flores o seu coração estava em casa, como se fosse uma delas. A todas chamava pelo nome, por amor dava-lhes novos nomes mais belos e sabia exactamente a duração da vida de cada uma, na alegria. Tratava a Natureza como uma irmã, como um ser amado, de quem se gostaria de receber a primeira saudação da manhã. E de tudo isto se ocupava aquela serena criatura,absorta na sua felicidade, quando íamos passear ao prado ou à floresta. E tudo isto não era absolutamente nada cultivado, estabelecido. Era simplesmente desenvolvido , à medida que ela crescia. Trata-se, pois, de uma certeza eterna, por todo o lado comprovada: quanto mais inocente e bela é uma alma, tanto mais familiar ela se mantém em relação às outras vidas felizes, a essas que chamamos inanimadas.
HÖLDERLIN (1770-1843), Hipérion ou o Eremita da Grécia.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

DE TARDE


Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.

Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.

Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão-de-ló molhado em malvasia.

Mas, todo púrpuro a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!

Cesário Verde, in O Sentimento dum Ocidental

sábado, 7 de junho de 2008

HOMENS E PEIXES

No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o mundo, e de todos os animais, quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam: antes não só escaparam todos , mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, por que não morreram também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens; os peixes viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por seus pecados, e ao mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo mundo visse que da companhia dos homens lhe viera todo o mal: e por isso, os animais que viviam mais perto deles foram também castigados, e os que andavam longe ficaram livres. Vede, peixes, quão grande bem é estar longe dos homens.

Padre António Vieira, Sermão de Santo António


quarta-feira, 4 de junho de 2008

CASA

A luz de carbureto
que ferve no gasómetro do pátio
e envolve este soneto
num cheiro de laranjas com sulfato
(as asas pantanosas dos insectos
reflectidas nos olhos, no olfacto,
a febre a consumir o meu retrato,
a ameaçar os tectos
da casa que também adoecia
ao contágio da lama
e enfim morria
nos alicerces como numa cama)
a pedregosa luz da poesia
que reconstrói a casa, chama a chama.


Carlos de Oliveira (1921-1981), Trabalho Poético

domingo, 1 de junho de 2008

EVOCANDO ALFREDO SARAMAGO

O pão ganhou estatuto de alimento principal durante a Idade Média e, nas classes populares, foi sustento e base de alimentação diária. A partir do seu estabelecimento na dieta foi, alternativamente, motivo de alegrias, de tristezas, de guerras e de paz. Tornou-se um símbolo do bem-estar mínimo. Haver ou não haver pão era o índice de avaliação que perdurou durante séculos. Reis, senhores e o poder municipal afadigaram-se para que houvesse pão, porque a sua falta era prenúncio de mal-estar e não raras vezes começo de revoltas e mola real de revoluções. A abundância de pão ou a sua falta traçaram a história dos últimos séculos.
Alfredo Saramago, Para uma História da Alimentação de Lisboa e seu Termo