domingo, 28 de setembro de 2008

CARIDADE AUTÊNTICA

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Uma mulher com quatro filhos que choram de fome, que distribui, apesar disso, metade do seu tempo, do seu carinho e do seu pão com uma vizinha desgraçada, não gosta da diferença que se faz da sua classe, que é dirigida pelo sentimento natural de beneficência, quando vê uma outra abastada, honrada, elogiada, correndo de carruagem, pregoando a caridade. Eu não participo desses preconceitos e reparos que se fazem, porque a caridade se exerce de carruagem; mas é preciso que quem assim a exerce se lembre, não do grande salto que deu para descer da carruagem, e entrar na casa do pobre, mas do salto que deu para subir a ela, porque a sua posição lhe trouxe o dever de socorrer os desvalidos.
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JOSÉ ESTÊVÃO, Primeiro Discurso sobre a Questão das Irmãs da Caridade (sessão parlamentar de 9 de Julho de 1861)

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

OUTROS SINAIS

Navegamos por águas longe e pelo nevoeiro. A bordo do nosso navio fantasma SOMOS O QUE SOMOS e ao nosso redor apenas o chapinhar das águas misteriosamente calmas de encontro ao casco nos impressiona e informa. Acreditamos que jamais o homem será escravo enquanto houver um só Poeta, isolado e ignorado que seja, a reclamar a si mesmo a decisão ou indecisão magníficas.

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O Futuro é tão antigo como o Passado. E ao caminharmos para o Futuro é o Passado que conquistamos!

 

ANTÓNIO MARIA LISBOA (1928-1953), Poesia

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

O REI IMAGINÁRIO

Andei incógnito pela Avenida Nevski. Passou sua majestade o imperador. Toda a cidade tirou os chapéus, e eu também, para não dar a perceber que sou o rei de Espanha. Achei indecente revelar a minha condição na presença de todos; é que, em primeiro lugar, é necessário apresentar-me na corte. O único obstáculo é não ter arranjado até ao momento um trajo de rei. Precisava ao menos de um manto. Já quis encomendá-lo ao alfaiate, mas esses são burros de todo, além de que descuram o seu ofício e metem-se em negócios escuros e, principalmente, dedicam-se ao trabalho de calceteiros. Resolvi fazer um manto do meu uniforme novo de funcionário, que vesti apenas duas vezes. Mas, para que esses canalhas não estragassem tudo, resolvi costurá-lo sozinho, à porta fechada para ninguém ver. Cortei-o eu à tesoura, porque o corte tem de ser absolutamente diferente.

 NIKOLAI GOGOL (1809-1852), Diário de Um Louco 

terça-feira, 9 de setembro de 2008

VELHOS CAMINHOS


Tal é a legenda dos velhos caminhos. […] Traçou-os o formigueiro humano com seu passo e repasso secular e os rebanhos no vaivém periódico entre a montanha e o prado. Desdenham da linha recta, como a mais fastidiosa de todas. O homem tinha o tempo por si e dons imperiosos de poeta. Esses caminhos, tão vagabundos como maviosos, hoje não seriam mais possíveis, pois que o nosso entendimento procede segundo outras coordenadas. Mas na Beira essas veredas medievais de feirantes e almocreves, de pé posto, sendas de cabras, atalhos, carreirinhos, para a fonte e para a mata, do poviléu, já antes do castro e mesmo da orca, eram todos assim: saltantes, sumidos e sinuosos como as ruas direitas das velhas cidades pré-afonsinas.

AQUILINO RIBEIRO (1885-1963), Arcas Encoiradas

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

CONSTITUIÇÃO DOS SÍMBOLOS

Os parnasianos tomam a coisa inteiramente e mostram-na; mas, assim, têm pouco mistério, subtraem às almas a alegria deliciosa de acreditar que criam. Nomear um objecto significa suprimir três quartos da fruição da poesia, que consiste em adivinhar pouco a pouco. Sugeri-lo, eis o sonho. É o uso perfeito deste mistério que constitui o símbolo: evocar um objecto para mostrar um estado de alma, ou, então, escolher um objecto e fazê-lo libertar um estado de alma, mediante uma série de decifrações.

Stéphane Mallarmé, Investigação sobre a evolução literária (1897)

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

OUTRA (CANÇÃO)


Se fosses luz serias a mais bela
De quantas há no mundo: - a luz do dia!
- Bendito seja o teu sorriso
Que desata a inspiração
Da minha fantasia!
Se fosses flor serias o perfume
Concentrado e divino que perturba
O sentir de quem nasce para amar!
- Se desejo o teu corpo é porque tenho
Dentro de mim
A sede e a vibração de te beijar!
Se fosses água – música da terra,
Serias água pura e sempre calma!
- Mas de tudo que possas ser na vida,
Só quero, meu amor, que sejas alma!

ANTÓNIO BOTTO (1897-1959)