quarta-feira, 27 de maio de 2009

ZARA




Feliz de quem passou, por entre a mágoa

E as paixões da existência tumultuosa,

Inconsciente, como passa a rosa.

E leve como a sombra sobre a água.

 

Era-te a vida um sonho, indefinido

E ténue, mas suave e transparente …

Acordaste … sorriste … e vagamente

Continuaste o sonho interrompido.

 

ANTERO DE QUENTAL (1842-1891)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

O POVO E OS DOUTORES


 O povo existe. Logo, a nação existe. O que o faz duvidar a si, meu caro pessimista, é que, quando V. considera a nação nunca considera o povo, que é no entanto, a sua parte principal. V. considera as classes superiores, reconhece-as cada vez mais numa decadência lastimável, e como, no seu falso ponto de vista, as classes superiores constituem a nação, V. conclui que a nação está perdida e nada há a fazer dela. Tudo vem de que V. desconhece o povo, tudo vem de que a sua educação aristocrática e pedante não o habilitou a conhecer, tudo vem de que V. no fundo o despreza. Para V. o povo continua a sua tradição miserável e não tem papel a desempenhar. Não constitui o fundo social, o seu fundamento, a sua base, mas uma vasa, uma escória. Dir-se-ia que V. é um individualista, mas não é. É apenas um entendimento afidalgado, que não reconhece a sociedade senão nas elites e para quem tudo o mais é plebe. No seu conceito, a sociedade, toda ela, só seria digna se fosse uniformemente constituída de doutores.

(…)

O que se pede ao povo? Cultura? – Não! Consciência. E é porventura a consciência popular o efeito de uma cultura doutoral como a sua?

 

JOÃO CHAGAS, Elogio do Povo

 

 

quarta-feira, 20 de maio de 2009

DE TARDE


Mais morta do que viva, a minha companheira

Nem força teve em si para soltar um grito;

E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito,

Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!

 

Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas,

Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas!

E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas,

Desciam mais atrás, malhadas e turinas.

 

Do seio do lugar – casitas com postigos –

Vem-nos o leite. Mas baptizam-no primeiro.

Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro,

Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!

 

CESÁRIO VERDE (1855-1886), O livro de Cesário Verde

domingo, 17 de maio de 2009

CANÇÃO HUMILDE


Brisa de Abril

Toda perfume,

Etéreo Nume

Contigo vai!

 

Pedrinha humilde

No chão perdida,

Do sol ferida

És uma estrela.

 

Negra ramagem,

O céu tocando,

Vai-se pintando

De azul celeste.

 

Gota de orvalho

Tremeluzindo,

Tens o sol rindo,

Dentro de ti!

 

Humildes cousas

Que ninguém olha:

Raminho ou folha

Ou grão de areia,

 

Tendes o encanto

Mais que divino

Que Deus menino

Achou na Terra …

 

TEIXEIRA DE PASCOAES (1877-1952)

 

quarta-feira, 13 de maio de 2009

HERACLITO E PLATÃO


Não amava eu Heraclito ternamente, não fiquei emocionado por uma grande alegria quando li pela primeira vez que as coisas não eram, mas eternamente se tornavam? Fiquei. Porém apreciei com igual profundidade e sinceridade a refutação disto no Teeteto de Platão. Adorei, deliciei-me com provas, argumentos que eram contra a razão humana, que mostravam a sua fraqueza e a sua impotência perante a verdade. Por que desejava eu isto? Era para exaltar um Deus? Era para fazer o homem sentir-se indigno? Era para o fazer desejar outra e melhor vida? Não, não era por isso. Por que razão era então? Não vivia no tempo dos sofistas tardios nem tinha o espírito de Protágoras.

 

FERNANDO PESSOA (1888-1935), Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal

quarta-feira, 6 de maio de 2009

PODERES DE BESTA CANSADA

Nisto, um grito vindo do quarto contíguo assustou-o de tal maneira que bateu com os dentes no copo. «O inspector chama-o», ouviu-se dizer. O que o assustou foi apenas o grito, este grito seco e cortante, como se fosse uma ordem militar que ele nunca seria capaz de atribuir a Franz. A ordem em si foi ao encontro do seu desejo: «Finalmente», respondeu, fechou o armário e dirigiu-se rapidamente para o quarto ao lado. Ali, encontrou os dois guardas que, com toda a naturalidade, correram com ele de novo para o quarto. «Que ideia é essa?», exclamaram eles, «quereis apresentar-vos em camisa perante o inspector? Ele mandava dar-vos uma sova e nós levávamos pela mesma tabela!» . «Deixem-me, com mil diabos», exclamou K., que recuara já até ao guarda-fatos, «se me assaltam na minha própria cama, não podem esperar que esteja vestido de fato de cerimónia.». «Não adianta nada», disseram os guardas, que, sempre que K gritava, se tornavam calmos ou mesmo tristes, confundindo-o ou, de certo modo, chamando-o à razão. […] 

FRANZ KAFKA (1883-1924), O Processo

sexta-feira, 1 de maio de 2009

A HARPA


Faz de mim a tua harpa, ergue-me, oh, ergue-me!

As cordas farão música sob os teus delicados dedos;

Toca a minha alma com a tua suave mão de trevo amarelo,

E o meu coração murmurará melodiosamente aos teus ouvidos.

Ora feliz, ora triste,

Ele há-de olhar o teu rosto e chorar,

E jazer em silêncio aos teus pés quando esqueceres.

Ninguém sabe para que nova melodia

Há-de soar a canção no céu.

Mas as marés da alegria chegarão às praias do infinito.

 

RABINDRANATH TAGORE (1861-1941), Poemas