sexta-feira, 24 de julho de 2009

OS ELEFANTES TAMBÉM MORREM

Em Cabinda, na zona a norte do aquartelamento onde estive dois anos, na orla do Maiombe, havia um trilho - antes, uma autoestrada - por onde viajavam as manadas de elefantes em trânsito para ambos os Congos.
Por arte da arquitectura da natureza, esse trilho fazia um T perfeito com a cabeceira da pequena pista de aviação que tinhamos ao nosso dispôr. Era uma zona de entrada das nossas patrulhas, interdita a humanos fardados em dias de tráfego paquiderme. Era lindo, majestoso e aterrador. Nem o maior comboio de mercadorias produzia tanta onda sísmica. O primeiro apeadeiro daquela mole em movimento era um pequeno ribeiro que ficava mais abaixo onde o banho era obrigatório com todo o cerimonial que incluia berros, rugidos, tratamento de pele e calos, raspadelas nas árvores. Um festim.
Um dia, passada toda a animália, algo de estranho aconteceu. Nós, já mais habituados aos sons e vida da mata, daquela mata especial, sentimos que alguma coisa pairava por ali e que havia no ar aquela sensação electrizante de que a borrasca anda no ar. O silêncio era, como soi dizer-se, ensurdecedor. Acautelámo-nos. Redobrámos a vigilância. Demos ordens precisas de tiro imediato aos sentinelas, em especial aos que iriam fazer os quartos da noite. Entre nós alferes e os furrieis, escalámo-nos em contínuo por forma a haver uma rápida e organizada reacção a alguma surpresa. A noite caíu. Rápida, tropical, abafada, húmida, quente.
Poucos de nós cederam a Morfeu. Já era muito bom que o Zé soldado dormisse porque, doutra forma, teria sido difícil manter o sossego ainda que apenas aparente. A tensão, a dúvida e o suor que nascia das entranhas nada queriam com aquele personagem mítico.
Cerca da uma da manhã, levantei-me e acerquei-me da varanda térrea da nossa messe (que preciosismo naquele sítio!). Acocorados, sentados, enconstados a pilastras dos alpendres, sombras, vultos e um silêncio granítico, frio e escuro. Ninguém conseguia pregar olho. E a mata, ela também, aterradoramente silenciosa. Há uma lenda em Cabinda que diz que as árvores falam. E é verdade. Eu ouvi, em patrulha nocturna, aquele sussurro encantado da mata. Os gigantes falam mesmo uns com os outros.
Naquela noite, até eles se calaram.
De repente, um tremendo restolho, um grito ou um berro que mais parecia a trombeta do juízo final. Ficámos estarrecidos, cabelos em pé, reacção imediata e o pessoal a saír em tropel das camaratas e armado para a parada. Com o automatismo dos já muitos meses ali vividos, em segundos tínhamos toda a gente no seu sítio. E aguardámos.
Não havia tiros nem movimentações. O IN estacara, com certeza também ele surpreso. E novo berro. Gutural, fantástico, atroador o suficiente para até as copas das árvores abanarem. Aí, identificámos o IN na cabeceira da pista. Uma dúzia de homens e de pontaria mais certeira, bala na câmara, três graduados e vamos à pista...
Havia uma enorme parede, arredondada, ameaçadora, abanando aquilo que parecia ser um enorme tronco. O IN, desta vez, não trouxera o Cavalo de Troia.
Um enorme elefante-macho, quase certo o velho e doente patriarca, fora abandonado pela manada para, só, ir ao encontro dos seus antepassados.
Dias depois, alguém nos veio dizer que jazia já entregue aos desconstrutores da Natureza. Desde os maiores, terráquios ou alados, até à mais pequena formiguinha que termina aquele meticuloso e perfeito trabalho de limpeza natural. Avassalador!
Impressionam-me e maravilham-me sempre aquelas imagens dos rituais fúnebres dos elefantes. E, quando aprecio essas imagens, olho para mim mesmo e reconheço: humanos, como somos tão ínfimos e nos julgamos donos do mundo.

JORGE MARQUES LOUREIRO
Associado da ALTERNATIVA

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